quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Porquê algodão quando pode ter seda?

Este estribilho publicitário, que alimentava a imaginação de muitos milhares de adoradores de chocolates algures entre os tempos do «palhaço no comboio ao circo» da vetusta Imperial e as actuais contorções da Eva Longoria para a Magnum, coloca uma questão algo pífia mas que ainda hoje vai agitando as hostes.

O velho dilema Dove continua a cavar alguma inquietação, particularmente na ala feminina, já que a fracção masculina costuma seguir uma filosofia bastante ecléctica do género «porquê algodão quando posso ter tudo?» (se calhar mais dentro da lógica de outro estribilho também muito conhecido: «eu é que não sou parvo»).

Entretanto, manda a prudência que se opte pelo algodão, quanto mais não seja porque à partida não engana. Claro que isto pode parecer pouco ambicioso quando comparado com as imaginadas delícias da suavíssima substância filamentosa segregada por larvas de lepidóptero (blargh!), mas não deixa de constituir apesar de tudo uma forte vantagem para os mais cautelosos ou traumatizados. É que nunca fiando (literalmente). Evidentemente, há o risco do tal algodão seguro não passar de um floco de algodão doce (cor-de-rosa, fofinho e tudo o mais que se sabe…).

É certo que a malta mais exigente almeja nada menos do que um bicho-da-seda Hermès, desdenhando o tipo de satisfação mais vegetariana e doméstica do algodão. Não deixa de ser um pensamento intrépido e modernaço (muito na senda do «porque eu mereço»), o problema é que não é líquido que se encontrem por aí casulos incautos. Para além de que os raciocínios temerários (que facilmente sacrificam o possível ao intangível), na maior parte dos casos, mais não fazem do que instigar expectativas pueris, abrindo caminho para grandes desilusões e também para todo o tipo de ataques oportunistas das fibras celulósicas e das contrafacções (forçando um bocado a analogia têxtil, mas vá lá).

Há ainda uma categoria particularmente omnívora de solitárias que teme não ter tempo para equacionar sequer a pergunta. Nesta perspectiva qualquer chocolate serve, até o mais amargo. Pensando bem, valem também os sucedâneos (pesem embora os inconvenientes óbvios da falta de cacau).

E não é por acaso que isto acontece. Nem por especial pendor bulímico. Não passa de uma resposta desesperada às implacáveis leis de mercado. Infelizmente, constata-se que as probabilidades de uma mulher conseguir encontrar fibra autêntica começam a diminuir dramaticamente a partir dos trinta anos. De repente, o que aos vinte parecia ser uma espécie de Pedroso & Osório de possibilidades transforma-se (com sorte) numa feira do nylon e do terylene, ainda para mais invadida por uma horda de consumidoras ávidas e belicosas.

No meio desta confusão, quem conseguir descortinar uma vulgar camisola de jacquard dá-se por muito contente. Ou seja, boas notícias para os rapazes, porque o poder negocial do lado masculino do tabuleiro vai aumentando na proporção directamente inversa. O exemplar mais anódino e fastidioso começa de forma paulatina a parecer quase apetecível face às contingências da oferta. Enfim, sob uma certa luz, sob um determinado ângulo, a falta de esperança mais tic‑tacquiante pode conseguir transfigurar o mais esverdeado e repelente Shrek num magnífico Príncipe das Astúrias. Ora isto pode parecer super giro e democrático mas não é.

O facto é que, totalmente à revelia das Nações Unidas, a realidade parece violar sistematicamente a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Começando pela Biologia. Afinal sempre é verdade que «não há mais metafísica no mundo senão chocolates».

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Quer urbanizar? Pergunte-me como.

Alerto desde já quem não teve ainda possibilidade de ler os conteúdos da proposta de revisão do actual regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (fabricada à socapa pelo Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional) que arrume o mais depressa que puder a sua mala de cartão e abandone rapidamente o país. Isto enquanto é tempo.

A proposta faz-me lembrar um pouco o Monsieur Castella do filme francês de Agnès Jaoui “O Gosto dos Outros”. Para quem não se recorde, Castella é um Sancho Pança dos negócios, uma criatura bacoca e grosseira, que por obrigação profissional mas sobretudo por força de uma paixão inopinada, decide ter lições de inglês e entrar no inacessível pequeno mundo da intelectualidade parisiense. Ora esta nova REN é uma espécie de Castella enfarpelado para ir à Ópera. O diploma refina-se, sofistica‑se, mas os dislates dos seus conteúdos regulamentares e dos próprios conceitos que os informam, bem como as motivações gollumescas de conquista de um poder sobre o território continuam lá. Só que agora vestem fraque.

Os despautérios mais gritantes do actual diploma não são eliminados, passam apenas a falar pianinho. É o caso das “cabeceiras das linhas de água” e das “áreas de máxima infiltração”, que ficam agregadas e travestidas, qual drag queen lantejoulante, pela nova designação (certamente mais fresca e moderna, contudo não menos indiscernível) de “áreas estratégicas de protecção e recarga de aquíferos”. E o novelo de Ariadne de “usos e acções compatíveis” (inovação 2006) convive animadamente com um regime geral tão cego e restritivo como o do diploma em vigor.

Pior. A proposta vem introduzir ainda mais entropia no sistema de planeamento. Passam a existir dois níveis distintos da REN: A Estrutura Nacional da REN (o nível estratégico), a cargo das CCDR e com uma escala manifestamente inadequada (1:250 000), e a delimitação municipal da REN (o nível operacional), que fica acometida aos municípios. Mas só uma análise muito perfunctória pode fazer pensar que tal constitui alguma espécie de vantagem para o poder local. Na verdade, trata-se, pelo contrário, de um reforço da posição das CCDR que, para além de ficarem com a última palavra sobre os critérios de demarcação e sobre a conformação final das cartas municipais, assim alcançam todo o poder sem qualquer esforço, remetendo os municípios para o papel moroso e humilhante de um autómato.

Outra forma de iludir a administração local está relacionada com a «atribuição de apoios por programas de financiamento público» aos municípios mais abrangidos pela REN, o que, por um lado, significa um reconhecimento de que a REN constitui de facto um “prejuízo”, mas, por outro lado, é tão útil como tapar um melanoma com um esparadrapo.

Outro aspecto particularmente absurdo da proposta, sobretudo considerando a premência da realização de acções de defesa da floresta contra incêndios (a qual é explicitamente assumida na lei pelo Sistema Nacional de DFCI e pelo Plano Nacional de DFCI), é o facto de se ter retirado do regime de excepção as operações e projectos aprovados pela Direcção-Geral dos Recursos Florestais. Deste modo, fica também manietada à decisão discricionária das CCDR a normal gestão dos espaços silvestres. E este perfume celulósico fuliginoso lançado agora pela REN pode trazer consequências cauterizantes para o país.

A REN passa a ser também demarcada nas áreas protegidas, coisa que não sucedia anteriormente, ferrando desta forma uma nova e calórica fatia do território. De facto, é o regabofe absoluto em nome de uma suposta protecção “ecológica e ambiental”. Na mão das CCDR fica, portanto e em última análise, o controlo sobre quando e onde não se pode construir e urbanizar, ou, o que é o mesmo, quando e onde se poderá fazê‑lo. A verdade é que a REN está para as transacções especulativas dos solos rústicos um bocado como o Herbalife para o emagrecimento rápido, só que consegue ser muitíssimo mais eficaz.

Enfim, haveria ainda muito mais para dizer sobre esta proposta de revisão da REN. Mas não tenho tempo, estou a fazer a mala.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

A Chorisia speciosa por ela própria

A Chorisia speciosa e o asteróide B 612

Se houvesse equivalente no mundo animal, a Chorisia speciosa estaria certamente algures entre o Dumbo e a Carmen Miranda. A mistura pode parecer bombástica (e é-o literalmente, uma vez que esta árvore pertence à família das Bombaceas), mas resulta evidente para quem a conheça bem. Isto não só por se tratar de uma espécie originária da América do Sul (Argentina, Paraguai e Sul do Brasil), o que pode explicar o seu lado mais sambeiro e folgazão, mas sobretudo pela combinação perfeitamente insólita entre a forma de pata de elefante do tronco e as vistosas e estridentes flores cor‑de‑rosa que recobrem a copa geralmente nos meses de Outubro e Novembro.

Para além deste óbvio pendor para uma extravagância fácil, a Chorisia speciosa parece também ter um problema de múltipla personalidade, respondendo por nomes vernáculos diversos, desde sumaúma até árvore-da-lã, passando por paina-fêmea, paineira-branca, paineira-rosa ou até barriguda (note-se que é provável que a Carmen Miranda, mesmo quando estava ainda na fase de Marco de Canaveses, pudesse não ter gostado muito deste último epíteto).

Mais grave é a circunstância de recentemente se pretender agrupar a espécie num novo género, o género Ceiba, passando esta árvore a assumir a nova designação de Ceiba speciosa. Não obstante, vamos continuar a referirmo-nos à espécie pelo nome científico tradicional. Mas não por ser esse o seu designativo mais comum, nem por não haver consenso absoluto na comunidade botânica sobre o assunto. Não, aqui não vamos aceitar a mudança de género da Chorisia, mas apenas por que nos parece ligeiramente traumático praticar uma mudança de género assim a sangue‑frio (como se não bastasse já parecer uma mescla excêntrica entre um proboscídeo e uma cantora tropical…). Se a Chorisia padece de facto do Síndrome de Benjamim (forma elaborada de denominar a transexualidade), então deve poder fazer a coisa com todas as condições. E aqui não há condições. Adiante.

A Chorisia é também muito mais do que uma árvore caprichosa, consegue ser verdadeiramente enternecedora se repararmos com atenção nos pequenos detalhes. O seu tronco pançudo encontra-se profusamente revestido por acúleos cónicos, pateticamente ameaçadores na sua impotência face às agressões imprevistas da grande cidade. Os acúleos são falsos espinhos, emergências epidérmicas duras e pontiagudas que se podem destacar com facilidade e que se encontram também nas roseiras.

Neste aspecto particular a Chorisia speciosa é um pouco como a temperamental rosa d’O Principezinho de Saint‑Exupéry (turista acidental do asteróide B 612), comovente na sua convicção de invencibilidade. De facto, tanto mais comovente quanto essa invencibilidade se mostra por demais frágil contra algo tão simples como um embondeiro ou uma ovelha (ou ainda contra uma motosserra, no caso particular da Chorisia). Como refere José Gil, no seu livro A Profundidade e a Superfície, Ensaio sobre O Principezinho de Saint-Exupéry, «o que irrita o principezinho, é a obstinação da flor em querer medir-se com tigres imaginários» (p.58). E sendo certo que num primeiro instante o irrita, é também verdade que deveria, ao invés, tê-lo enternecido (como o próprio principezinho reconhece mais tarde num momento de dolorosa saudade). A Chorisia speciosa é também isso: irritante mas enternecedora na sua audácia tão espampanante quanto deslocada.

Dito tudo isto, quem quiser conhecer melhor a Chorisia speciosa, particularmente se considerar que o tamanho importa, poderá visitar o maior exemplar existente no país no Jardim Botânico de Lisboa (e para tornar a coisa ainda mais aliciante adianta‑se que só o perímetro à volta do tronco tem mais de cinco metros!). Já aos gerontófilos interessará possivelmente mais o vetusto espécime com quase duzentos anos do Jardim da Praça da Alegria.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

A propósito de Keats e da sua tuberculose romântica, lembrei-me de George Orwell, outro tísico interessante

Li pela primeira vez o “1984” numa edição portuguesa da Editora Ulisseia, versão Livros Unibolso, anterior à actual edição da Antígona e inquietantemente anterior a 1984. O livro estava enterrado no labirinto de estantes da casa dos meus pais, pronto para ser devidamente exumado pelas minhas mãos incautas.

Essa tradução está recheada de idiossincrasias caricatas, pelo menos à luz da versão original. Por exemplo, novilíngua/newspeak, duplipensar/doublethought/doublethink, crimepensar/thoughtcrime/crimethink, teletela/telescreen, “o Grande irmão vela por ti”/“Big Brother is watching you”. Como acabei por ler o original em inglês só muito mais tarde, foram estas as palavras que marcaram a minha epifania (refiro-me a uma epifania não-alucinogénia e sem inclinações de natureza religiosa, mas que não deixou, apesar de tudo, de ser uma verdadeira espécie de epifania).

O impacto não foi atenuado pelo distanciamento razoavelmente confortável face à data fatídica, no início da (mais tranquilizadora) década de noventa. A distopia política predita em 1948 para o ano de 1984 é suficientemente realista para poder, por hipótese, materializar-se em qualquer altura ou lugar sob múltiplas outras formas.

Ou não?

Continuo a pensar que sim. O livro é muito mais do que o espelho do estalinismo soviético ou do III Reich, recria o interior do Estado totalitarista perfeito, onde não há espaço para o indivíduo, a liberdade morreu, a esperança não existe. Winston, o personagem principal, enceta uma luta (escrevendo a sublevada frase “ABAIXO O GRANDE IRMÃO”), que se compreende no final ter estado perdida à partida. Winston era desde o início do livro o “último homem vivo”. Já Júlia, a sua cúmplice, é ela mesma um subproduto do Partido/Ingsoc/“English Socialism”, por isso não conta.

Há aspectos-chave do universo orwelliano que são transmutáveis para toda uma série de microcosmos variados e pululantes aqui e agora. A luta de Winston contra a propaganda, o “dois mais dois igual a cinco”, a falsificação do passado, a fabricação de eufemismos, a simplificação do pensamento, a concomitância de ideias antagónicas e, em suma, o combate contra todas as formas de coercibilidade violenta e/ou irracional aniquiladoras da verdade e da vontade própria será sempre actual. E não me estou a referir a países distantes, com estranhos costumes, em épocas longínquas. A génese da oligarquia, autocracia, fascismo, comunismo e toda uma série de sucedâneos terminados em ia ou ismo, a escalas infinitamente grandes ou infinitamente pequenas, pode estar em qualquer lado, em qualquer um de nós. Na verdade, a luta de Winston começa por ele próprio. [Ou talvez não seja exactamente assim. Numa paráfrase apócrifa de Orwell, “todas as tentações de prepotência são iguais, mas em alguns são mais iguais que noutros”.]

Num certo sentido, este livro é um congénere menos acabado de outro também muito conhecido livro de Orwell, escrito anteriormente ao “1984”. “Animal Farm”/ “O Triunfo dos Porcos” retrata declaradamente e de uma forma mais cirúrgica o regime praticado na URSS. Não sei por que é que gosto menos dele, talvez simplesmente porque o li depois.

Infelizmente, não conheci muitas pessoas dispostas a debater acaloradamente este livro, na maior dos casos por iliteracia, muitas vezes jactante, noutros porque os livros do George Orwell, especialmente os mais disseminados “1984” e “O Triunfo dos Porcos” caíram em certos círculos numa espécie de index de vulgaridade (note-se, quer tenham ou não, de facto, sido lidos).

Ando agora a construir o meu próprio labirinto de estantes “a la” Dédalo (as patologias do mercado imobiliário adiam as pretensões domésticas de qualquer um), pelo que espero que a minha descendência venha a ter alguma propensão pela arqueologia caseira…

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O problema da palavra agradável

Tenho andado a pensar na palavra “agradável” e garanto que tem sido desagradável. É que a palavra “agradável” concentra tudo o que há de mais insuportável no mundo. Ou, pensando bem, nem sequer isso. A palavra “agradável” reúne simplesmente tudo o que há de mais tépido, neutro e assim-assim no mundo. E também o mais-ou-menos, o talvez-mas-não-tenho-bem-a-certeza e tudo o que seja, sei lá, passável.

É como quando nos perguntam se alguém é gira ou giro e nós respondemos que é muito simpática ou simpático. Está-se mesmo a ver que a criatura em causa é pelo menos tão horripilante como a Lili Caneças ou o Joe Berardo (que, diga-se em seu abono, não se pode dizer que sejam especialmente agradáveis). “Agradável” é isso. É o que se diz de alguma coisa quando todos os outros predicados falham.

Vou dar um exemplo. Quem, no seu inteiro juízo, se lembraria de apodar o Gandhi, o Churchill, o Martin Luther King, ou mesmo (num estilo acentuadamente mais curvilíneo) a Sofia Loren, enfim, qualquer personalidade com um mínimo de personalidade, de “agradável”? Nem mesmo Jesus Cristo procurou ser sempre um tipo agradável (veja‑se o que aconteceu com os vendilhões do templo…). A verdade é que as pessoas agradáveis não têm história. São como as famílias felizes do Tolstoi, parecem‑se todas demasiado umas com as outras.

Tentem agora pensar em qualquer coisa que valha mesmo a pena. Não precisa de ser algo que tenha mudado o mundo (mesmo que seja só o vosso), basta ser alguma coisa que vos tenha ficado na memória. É um bom teste. Porque pelo menos a maior parte (e já é uma parte enorme) do que é “agradável” costuma ser também ao mesmo tempo amplamente esquecível. E há uma razão forte para o nosso cérebro não considerar relevante recordar pessoas ou eventos agradáveis. É que costumam ser também incrivelmente chatos. Qualquer pessoa com alguma prática, quando ouve a palavra “agradável”, saca logo de um bocejo. E muda de conversa (ou de interlocutor).

“Agradável” rima com “abominável”, com “intragável” e com “detestável”. Infelizmente, desde há uns tempos chegou esta moda do agradável. E tem sido uma autêntica praga, um bocado como os almoços ao balcão para os empregados bancários. E, se virmos bem, até não combina mal com os queques e os croquetes que se engolem à pressa nesses sítios. Mas reparem como seria impensável (outra rima indesejável) qualificar uma grande paixão ou uma grande vitória ─ ou tudo o que seja minimamente importante ─ como “agradável”.

Em suma, caro leitor, por via das dúvidas, o melhor é ousar ter uma vida extraordinária (ou até uma vida extra ordinária, se for caso disso), tudo, menos ficar-se por uma existência agradável.