Li pela primeira vez o “1984” numa edição portuguesa da Editora Ulisseia, versão Livros Unibolso, anterior à actual edição da Antígona e inquietantemente anterior a 1984. O livro estava enterrado no labirinto de estantes da casa dos meus pais, pronto para ser devidamente exumado pelas minhas mãos incautas.
Essa tradução está recheada de idiossincrasias caricatas, pelo menos à luz da versão original. Por exemplo, novilíngua/newspeak, duplipensar/doublethought/doublethink, crimepensar/thoughtcrime/crimethink, teletela/telescreen, “o Grande irmão vela por ti”/“Big Brother is watching you”. Como acabei por ler o original em inglês só muito mais tarde, foram estas as palavras que marcaram a minha epifania (refiro-me a uma epifania não-alucinogénia e sem inclinações de natureza religiosa, mas que não deixou, apesar de tudo, de ser uma verdadeira espécie de epifania).
O impacto não foi atenuado pelo distanciamento razoavelmente confortável face à data fatídica, no início da (mais tranquilizadora) década de noventa. A distopia política predita em 1948 para o ano de 1984 é suficientemente realista para poder, por hipótese, materializar-se em qualquer altura ou lugar sob múltiplas outras formas.
Ou não?
Continuo a pensar que sim. O livro é muito mais do que o espelho do estalinismo soviético ou do III Reich, recria o interior do Estado totalitarista perfeito, onde não há espaço para o indivíduo, a liberdade morreu, a esperança não existe. Winston, o personagem principal, enceta uma luta (escrevendo a sublevada frase “ABAIXO O GRANDE IRMÃO”), que se compreende no final ter estado perdida à partida. Winston era desde o início do livro o “último homem vivo”. Já Júlia, a sua cúmplice, é ela mesma um subproduto do Partido/Ingsoc/“English Socialism”, por isso não conta.
Há aspectos-chave do universo orwelliano que são transmutáveis para toda uma série de microcosmos variados e pululantes aqui e agora. A luta de Winston contra a propaganda, o “dois mais dois igual a cinco”, a falsificação do passado, a fabricação de eufemismos, a simplificação do pensamento, a concomitância de ideias antagónicas e, em suma, o combate contra todas as formas de coercibilidade violenta e/ou irracional aniquiladoras da verdade e da vontade própria será sempre actual. E não me estou a referir a países distantes, com estranhos costumes, em épocas longínquas. A génese da oligarquia, autocracia, fascismo, comunismo e toda uma série de sucedâneos terminados em ia ou ismo, a escalas infinitamente grandes ou infinitamente pequenas, pode estar em qualquer lado, em qualquer um de nós. Na verdade, a luta de Winston começa por ele próprio. [Ou talvez não seja exactamente assim. Numa paráfrase apócrifa de Orwell, “todas as tentações de prepotência são iguais, mas em alguns são mais iguais que noutros”.]
Num certo sentido, este livro é um congénere menos acabado de outro também muito conhecido livro de Orwell, escrito anteriormente ao “1984”. “Animal Farm”/ “O Triunfo dos Porcos” retrata declaradamente e de uma forma mais cirúrgica o regime praticado na URSS. Não sei por que é que gosto menos dele, talvez simplesmente porque o li depois.
Infelizmente, não conheci muitas pessoas dispostas a debater acaloradamente este livro, na maior dos casos por iliteracia, muitas vezes jactante, noutros porque os livros do George Orwell, especialmente os mais disseminados “1984” e “O Triunfo dos Porcos” caíram em certos círculos numa espécie de index de vulgaridade (note-se, quer tenham ou não, de facto, sido lidos).
Ando agora a construir o meu próprio labirinto de estantes “a la” Dédalo (as patologias do mercado imobiliário adiam as pretensões domésticas de qualquer um), pelo que espero que a minha descendência venha a ter alguma propensão pela arqueologia caseira…
Essa tradução está recheada de idiossincrasias caricatas, pelo menos à luz da versão original. Por exemplo, novilíngua/newspeak, duplipensar/doublethought/doublethink, crimepensar/thoughtcrime/crimethink, teletela/telescreen, “o Grande irmão vela por ti”/“Big Brother is watching you”. Como acabei por ler o original em inglês só muito mais tarde, foram estas as palavras que marcaram a minha epifania (refiro-me a uma epifania não-alucinogénia e sem inclinações de natureza religiosa, mas que não deixou, apesar de tudo, de ser uma verdadeira espécie de epifania).
O impacto não foi atenuado pelo distanciamento razoavelmente confortável face à data fatídica, no início da (mais tranquilizadora) década de noventa. A distopia política predita em 1948 para o ano de 1984 é suficientemente realista para poder, por hipótese, materializar-se em qualquer altura ou lugar sob múltiplas outras formas.
Ou não?
Continuo a pensar que sim. O livro é muito mais do que o espelho do estalinismo soviético ou do III Reich, recria o interior do Estado totalitarista perfeito, onde não há espaço para o indivíduo, a liberdade morreu, a esperança não existe. Winston, o personagem principal, enceta uma luta (escrevendo a sublevada frase “ABAIXO O GRANDE IRMÃO”), que se compreende no final ter estado perdida à partida. Winston era desde o início do livro o “último homem vivo”. Já Júlia, a sua cúmplice, é ela mesma um subproduto do Partido/Ingsoc/“English Socialism”, por isso não conta.
Há aspectos-chave do universo orwelliano que são transmutáveis para toda uma série de microcosmos variados e pululantes aqui e agora. A luta de Winston contra a propaganda, o “dois mais dois igual a cinco”, a falsificação do passado, a fabricação de eufemismos, a simplificação do pensamento, a concomitância de ideias antagónicas e, em suma, o combate contra todas as formas de coercibilidade violenta e/ou irracional aniquiladoras da verdade e da vontade própria será sempre actual. E não me estou a referir a países distantes, com estranhos costumes, em épocas longínquas. A génese da oligarquia, autocracia, fascismo, comunismo e toda uma série de sucedâneos terminados em ia ou ismo, a escalas infinitamente grandes ou infinitamente pequenas, pode estar em qualquer lado, em qualquer um de nós. Na verdade, a luta de Winston começa por ele próprio. [Ou talvez não seja exactamente assim. Numa paráfrase apócrifa de Orwell, “todas as tentações de prepotência são iguais, mas em alguns são mais iguais que noutros”.]
Num certo sentido, este livro é um congénere menos acabado de outro também muito conhecido livro de Orwell, escrito anteriormente ao “1984”. “Animal Farm”/ “O Triunfo dos Porcos” retrata declaradamente e de uma forma mais cirúrgica o regime praticado na URSS. Não sei por que é que gosto menos dele, talvez simplesmente porque o li depois.
Infelizmente, não conheci muitas pessoas dispostas a debater acaloradamente este livro, na maior dos casos por iliteracia, muitas vezes jactante, noutros porque os livros do George Orwell, especialmente os mais disseminados “1984” e “O Triunfo dos Porcos” caíram em certos círculos numa espécie de index de vulgaridade (note-se, quer tenham ou não, de facto, sido lidos).
Ando agora a construir o meu próprio labirinto de estantes “a la” Dédalo (as patologias do mercado imobiliário adiam as pretensões domésticas de qualquer um), pelo que espero que a minha descendência venha a ter alguma propensão pela arqueologia caseira…
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